quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O Carnaval em Aveiro




Entrudo vem de intróito à Quaresma. Na Terça-feira de Entrudo o povo costumava dizer carne vai, o significa abstinência de carne, o que para alguns autores explica o aparecimento da palavra Carnaval.

 Nas freguesias rurais do concelho, os antigos folguedos tinham por hábito dois usos: a velhada e a pulha. As velhadas consistiam em grupos de raparigas e rapazes de um local, que faziam rondas pelas casas da região, vestidos de forma entrudesca e de cara tapada, com o propósito de fazer palhaçadas e envolver a localidade nos festejos. As pulhas eram grupos de rapazes que se deslocavam à noite, à porta das casas onde havia raparigas e recitavam cantigas jocosas, que por vezes chegavam mesmo a inquietar as famílias. As pulhas (graçolas) eram atiradas para o ar, em voz alta, de forma rápida, ex. “Ó ti Atonho da Nina? / Olhe qu´eu topei um moço / A fazer cócigas à sua filha / Antr´a barriga e o piscoço!”, fugindo estes de imediato para outras casas, onde as repetiam e deixavam intrigados pais e familiares das raparigas. Ainda no âmbito das muitas entrudices, os rapazes atiravam bombas, assustando as pessoas; acendiam bichas de rabiar que atiravam aos pés das moças e espetavam rabos de papel nas costas dos transeuntes. Os grupos percorriam as ruas em trajes jocosos, de cara tapada, enfarruscada ou enfarinhada.

Nas ruas da cidade, para o povo, havia cegadas[1] (grupos que se dedicavam às entrudices, a tocar viola e a cantar à desgarrada sempre que viam uma senhora à janela); mascarados que passeavam nas ruas, para baixo e para cima; cortejos com foliões, carros alegóricos e Bandas de Música, onde tocavam clarins e tambores, que partiam da estação, passavam pela Praça da República, Canal de S. Roque, Avenida Bento de Moura, Rua de S. Martinho e acabavam na Praia das Lizuras, bem como cortejos de crianças das escolas do distrito que faziam o percurso da estação até ao Rossio. Nos cortejos, os mascarados apresentavam-se vestidos a académicos das Universidades da Gafanha, Mataduços e Alumieira; a ninfas e sereias; a


chechés, dominós; diabretes; pescadores; marnotos; bateleiros; empilhadeiras; lanceiros de Santiago, Vilar e S. Bernardo; com diversos trajes medievais e alegorias nomeadamente fazendo referência a cavalos-marinhos, ao jornal O Democrata e às Eleições. O sal e o gabão de Aveiro estavam também sempre representados. O povo manifestava-se com júbilo atirando flores sobre as Bandas e os carros.

Na década de 30 fez-se a Batalha das Flores, sobre o canal central, com barcos que passavam carregados de foliões que atiravam flores uns aos outros, essencialmente pétalas de rosas. A organização do evento esteve a cargo da CMA e das juntas de freguesia do concelho. Na Batalha das Flores participaram adultos, crianças e diversas Associações locais[2].

Na cidade proliferavam ainda os bailes particulares, para familiares e amigos. Para os bailaricos particulares, que vigoraram até à década de 40, 50 cada um levava o que queria: sandes, bolos de bacalhau, vinho ou champanhe. Havia ainda bailes públicos, em salões da Praça do Peixe e da Rua do Alfena. Para os bailes públicos as crianças menores de 14 anos estavam interditas de entrar, assim como os mais idosos e mulheres com crianças ao colo, para se evitarem acidentes. Os mais endinheirados tinham bailes de máscaras nos salões e, a partir do século XIX, sob a influência da sociedade vitoriana, no Teatro Aveirense, onde as principais colectividades promoviam o evento com o intuito de angariar fundos, pelas mais diversas razões, nomeadamente reforço da caixa de socorros do Recreio Artístico ou para apoiar o financiamento do novo hospital[3].

Em finais do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a cidade apresentava como principais colectividades locais a Música Velha, que deu origem à Banda Amizade, a Sociedade de Recreio Artístico, o Sport Clube do Beira-mar, o Clube dos Galitos, a Companhia de Salvação Guilherme Gomes Fernandes[4], a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Aveiro[5], o Teatro Avenida e o Clube de Aveiro. As 5 primeiras Associações alugavam, por um dia, o salão do Teatro Aveirense e a plateia,

que era posteriormente desmanchada, para dar origem ao Baile de Carnaval ou Soirée Dançante, para sócios e familiares. Depois de terminada a Reunião dançante no Teatro, os Galitos p. e. davam continuidade aos festejos, porque logo de seguida faziam outro na sede, bem como récitas organizadas pelo Grupo Cénico do Clube dos Galitos. A Conceição Costa que reside na Rua Castro Matoso organizou muitos bailes para o Galitos, juntamente com o marido e amigos. Na sede, os participantes no bailarico
comiam e bebiam o que levavam, rojões, marisco, pataniscas e bolos de bacalhau, isto até 2009. Os salões eram sempre devidamente engalanados para o efeito, assim como os camarotes e frisas, de onde pendiam colgaduras. A responsabilidade ornamental cabia às respectivas Comissões Organizadoras, que penduravam nos tectos dos salões desde guarda-chuvas, a balões, a cubos, entre outros elementos decorativos e nas paredes colocavam colchas.

À entrada do Teatro Aveirense era condição obrigatória as mulheres destaparem um pouco os rostos, para que a direcção se certificasse do sexo, e as deixasse entrar sem pagar. No baile participavam máscaras como o dominó[6], a salineira, a minhota, a tricana e alegorias diversas. Os trajes eram confeccionados em casa ou alugados na Rua Direita ou na Benedita Vergalha, na Praça do Peixe, perto do Laboratório Nostro. As mascarinhas eram de cartão colorido ou pano, de vários feitios e cobriam a cara por completo.

No carnaval e para os bailes, os mascarados faziam-se acompanhar de papelinhos coloridos, confetis, serpentinas, bombas de mau cheiro e bisnagas de água que compravam na loja do Souto Ratola, avô do Carlos Souto.

No intervalo dos bailes e quando este era organizado pelo Recreio Artístico, a Comissão Organizadora oferecia sempre bolos sortidos, pirolitos[7], cerveja e licores aos seus sócios.




O baile de máscaras realizava-se no Teatro entre as 21h30 e a 1h00 da manhã. Frequentavam o baile Aida Soares, Natalina Picado, Aurora da Cruz, entre outras. Depois daí muitos mascarados ainda iam para o Baile do Sport Clube do Beira-mar.

As crianças tinham as suas famosas matinées, cerca das 15h00, no Domingo Magro, às quais iam fantasiadas, e eram distribuídos prémios, como o de melhor traje tradicional ou então ao par que se distinguisse na dança do fox-trot.

No Clube de Aveiro, onde hoje se situa o edifício do Banco de Portugal, e mais tarde na Rua Manuel Firmino também havia bailes de Carnaval, de Sábado para Domingo, para a elite local. Os bailes do Clube começavam às 21h30 e acabavam cerca das 5 da manhã. Os participantes não iam mascarados, os homens que o frequentavam vestiam-se no Lopes Penafiel, na Rua Direita, casa comercial que se situava ao lado da Casa Espanhola. As senhoras de Aveiro como a D. Maria Teresa Peixinho e a esposa do Dr. Alberto Souto vestiam-se, em lojas, do Porto, ou tinham modistas, como a sogra do Artur Lobo e a D. Silvina que viveu perto da Sé, na Rua Guilherme Gomes Fernandes. As senhoras trajavam vestidos compridos estampados ou lisos, de seda ou cetim ou saia e casaco. Os sapatos eram comprados na Sapataria Miguéis. Frequentavam o espaço do Clube o Dr. Sousa Santos, o pai do Dr. Rogério Leitão, o Dr. Moreira Lopes, o Dr. Artur Alves Moreira, o Dr. Barros, o Dr. Alberto Machado, o Dr. António Peixinho, o Dr. Alfredo Esteves, o Eng. Salgueiro, os Vilarinhos e os Marques Pereira da Alba. No local, à meia-noite, servia-se a ceia. No bar do Clube podia-se consumir sandes, nomeadamente de presunto. As crianças tinham a sua matinée à segunda-feira. As mães para a matinée levavam tabuleiros e cestos cheios de doces sortidos, rissóis, bolos de bacalhau e, na cozinha do Clube, a D. Maria da Graça ainda preparava ovos mexidos e salsichas para as crianças.

Na Fábrica Aleluia também se comemorava o Baile da Micaréme. Baile organizado pelo Sr. Gervásio e Carlos Aleluia, mas era um local restrito, frequentado apenas por gente grada da cidade como, o Sr. Governador Civil, diversos advogados locais, membros do executivo da Câmara, empresários, entre outras individualidades.



Pagava-se cerca de 15 tostões para lá se entrar na década de 50, do século XX. O baile começava às 21h00 e acabava às 2h00 da manhã. Também havia baile no Domingo Gordo das 15h00 até às 20h00. Normalmente as senhoras levavam, para o intervalo do bailarico, num cestinho de palha ou vime, leitão, bôla de sardinha, sandes de galinha, enguia de escabeche, bacalhau frito, panados, bolos de bacalhau e bolos sortidos para comerem e bebidas como pirolitos, vinho, água e a cerveja Topázio. No final deste baile muitos partiam ainda para o baile do Teatro Avenida que durava até às 5h00 da manhã e dispunha de dois salões, o nobre e o do terraço. No Teatro Avenida os mascarados tanto podiam levar lanche, que é o que acontecia sempre que as mães acompanhavam as filhas ou podiam consumir no bar. As laranjas estavam sempre presentes nos cestinhos para durante a noite os foliões matarem a sede. Muitos  dos homens levavam bebidas. O sexo masculino trajava ou roupas comuns, ou o gabão de Aveiro ou o dominó; as mulheres essencialmente o dominó. As máscaras eram compradas ou alugadas na loja da D. Zinda, perto do estabelecimento do Albino Miranda ou nas 5 Bicas, na Casa Savoy ou então numa casa comercial na Praça do Peixe perto do Laboratório Nostro. Frequentavam o baile, as raparigas que andavam nos grupos teatrais e de revista como o Cantar do Galo, Molho de Escabeche e Escabeche e Piripipi. No início da vida do Teatro Avenida toda a gente tinha acesso ao espaço, depois as pessoas começaram a ser seleccionadas. As crianças tinham o acesso completamente vedado.

Nos Bombeiros também se faziam à época bailes carnavalescos. Nos Bombeiros era necessário reservar e pagar a mesa. Nos bailes da Companhia de Salvação Guilherme Gomes Fernandes era vedada no entanto a entrada a ganapos[8]. Para os Bombeiros também se levava o lanche.











Aos domingos e às terça-feiras de Carnaval comia-se Cozido à Portuguesa, tradição que permaneceu ao longo dos tempos.

Entre o Carnaval e a Páscoa realizavam-se também na cidade, promovidos pela Banda Amizade, os bailes da Micaréme e da Pinhata. O da Pinhata tem a ver com a tradição de partir a bilha de barro, logo no sábado seguinte após o Carnaval, o outro, é o que se realiza na quarta-feira da Quaresma. Bailes que a Banda preserva, porque ainda os realiza anualmente.

A Banda Amizade presentemente realiza 8 bailes de máscaras; e nos últimos 7, 8 anos e por questões orçamentais, anualmente sempre que há feriados. Nestes bailes que são temáticos, as mulheres participam completamente disfarçadas. Os temas são os seguintes: Reis; Capitães; Tricanas; Camões e Suas Ninfas; Republicanas; Bruxas; Restauradoras e o do Pai Natal.

Para o actual baile da Banda Amizade, os participantes não têm por hábito levar farnel, consomem normalmente o que se vende no bar: sandes de queijo e fiambre e bebem cervejas, sumos diversos e ginga caseira oferecida, para o efeito, pelos habitantes locais do Albói, à direcção.

No que concerne ao Baile do Beira-mar, este teve o seu início na década de 20 e um interregno na década de 70, retomando, mais tarde, com os seccionistas de Andebol e depois com a Secção de Basquetebol. Ao Baile de Carnaval, do Sport Clube do Beira-mar vão famílias completas, mascaradas, desde seniores, a garotos e jovens, com idades compreendidas entre os 5 e os 20 anos, oriundos da Beira-mar e de baixa condição social, mas onde também muitos deles são de fora do concelho, embora seja um baile destinado a sócios e familiares. O público já se encontra fidelizado.







As máscaras são constituídas, essencialmente, por roupas velhas, ou alusivas a animais; os figurantes vestem-se também de homem ou mulher e o Carnaval realiza-se anualmente à segunda-feira. A aveirense Maria da Boca Torta, da freguesia da Glória não falta um baile. Para o baile já não se levam confetis porque agora são mais as crianças que os usam.

Em finais do século XX os cortejos carnavalescos saíam do Depósito da Água e tinham o seu término no Pavilhão octogonal, no antigo Parque de Feiras, local onde se realizava o baile. No cortejo participavam grupos de Samba de Vale de Ílhavo, Ovar, Estarreja e carros alegóricos.

Em Aveiro no ano de 2009, fez parte da programação carnavalesca: o Carnaval Académico; o Pré - carnaval; o Carnaval Infantil; o Baile do Farnel; o Carnaval Sénior; a Grande Festa do Carnaval e o Carnaval do Emigrante. A realização fora da responsabilidade conjunta da Câmara Municipal de Aveiro, da Junta de Freguesia da Vera-Cruz, do Turismo do Centro de Portugal e de alguns bares que ao evento se associaram, criando uma ambiência convidativa a todos os aveirenses.

O Carnaval contemporâneo é uma festa anual, de cariz tradicional, que promove desfiles sumptuosos, que arrebata multidões para as ruas e para os foliões que percorrem as principais artérias da cidade, a pé ou em carros alegóricos com som, fazendo extravasar emoções, tensões reprimidas e paixões carnais, onde o real e o fantástico se confundem. Dos cortejos emanam extravagancias, sensualidade, erotismo e exibicionismo. As luzes das câmaras televisivas dão destaque aos corpos desnudados.

Centrado no disfarce, na música, na dança e em gestos, a folia apresenta características distintas nas cidades em que se popularizou. A festa carnavalesca diverge de país para país. Portugal apostou nas marchas carnavalescas influenciado pelo Carnaval Brasileiro, mas procurou sempre preservar a sua identidade cultural. Nos cortejos apresenta desde uma grande variedade de caricaturas alusivas aos políticos contemporâneos e cabeçudos, aos mais diversos foliões que trajam vestes policromadas, aos carros alegóricos culminando com os reis da festa, o lança-perfume, pós, água, o confeti e a serpentina, importados estes últimos da Europa nos princípios do século XX.

Quanto aos dias exactos de início e fim do tempo carnavalesco variam de acordo com as tradições nacionais e locais, e têm-se alterado ao longo do tempo.


Fontes:

Cacia e o Baixo-Vouga – Apontamentos Históricos e Etnográficos, ed. CMA, 1984, págs. 126 a 131; O Povo de Aveiro de 05.02.1882; de 19.02.1882; de 26.02.1882; de 10.02.1884 e de 04.02.1900; Povo de Aveiro, de 18.02.1900; de 25.02.1900; de 03.02.1901 e de 09.02.1902; O Democrata de 13.02. 1909; de 03.2.1911; de 19.02.1927 e de 26.02.1927.
Testemunhos de Silvio Palpista, de 88 anos, natural de Aveiro; Aurélio Gomes, de 73 anos, residente à 68 anos em Aveiro; Maria Manuel Vilhena Barbosa, 62 anos, natural da freguesia da Vera-Cruz; Júlia dos Santos Silva Monteiro, 80 anos, natural da freguesia da Vera-Cruz; Carlos Marques, 37 anos, presidente da direcção da Banda Amizade; Maria da Graça Neves, 74 anos, residente na Vera-Cruz; Gonçalo Lé, 68 anos, natural da freguesia da Glória; Maria Luísa do Resgate Marques Mendes, 87 anos, residente em Aveiro à 69 anos; João Barbosa, actual Presidente da Junta de Freguesia da Vera-Cruz, residente à 51 anos, em Aveiro e João Silva Lopes, 80 anos, natural da Freguesia da Vera-Cruz.





[1] Nas cegadas angariavam-se fundos que se destinavam a ser distribuídos pelos pobres. Com o dinheiro recolhido nas cegadas financiou-se também a erecção da estátua de José Estêvão. As cegadas prevaleceram até à década de 70, até aos primeiros estudantes universitários da UA.
[2] Evento que se repetiu em 2009, com a colaboração das escolas básicas locais.
[3] Actual Hospital velho.
[4] Actuais Bombeiros novos.
[5] Actuais Bombeiros velhos.
[6] Gabão preto ou castanho; cara completamente coberta por um pano, onde se abria a boca e os olhos e luvas pretas ou castanhas.
[7]Garrafa de forma cilíndrica na base, encimada por um gargalo cónico, com um aro de borracha na extremidade superior, que fechava hermeticamente através de uma bola de berlim, que depois de partida a garrafa servia para os rapazes jogarem ao berlinde.
[8] Miúdos com idades inferiores a 12 anos, passando depois a idade mínima para 15 anos.

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